quarta-feira, 25 de março de 2015

Quando ajudar machuca

Quais são as suas reais motivações para ajudar o pobre? você realmente o ama e deseja servi-lo (e servir não é sinônimo completo de ajudar)? ou há outras motivações em jogo?

Não nos enganemos: existe alguma motivação humana pura? existe um desejo único não contaminado por outros?

Por exemplo, o desejo de ser médico nasce de várias fontes, dentre outras, já estudadas pela psicologia: prestígio do saber, desejo do contato, prestígio social, aliviar o sofrimento alheio, possibilidade de ficar rico, necessidade (e não desejo) de tornar-se útil, atração pela responsabilidade, necessidade de reparar... Estas fontes não são exclusivas! Várias delas podem estar atuando em um médico, e uma não anula as outras, e as mais nobres não são invalidades pelas mais egoístas.

Quando adotamos o auxiliar os mais desfavorecidos como um objetivo, podemos estar buscando prestígio, reconhecimento social, sentirmo-nos importantes e completos... Novamente não podemos aspirar sermos puros em nossas motivações; mas devemos aspirar cultivar as razões mais nobres, submetendo as mais egoístas.

Um dos riscos no auxiliar o pobre é o "complexo de deus": uma percepção semiconsciente e sutil de superioridade, vinda da ideia de sermos o que somos por mérito próprio, fazendo-nos sentir superiores àqueles que nos propomos ajudar, sabendo de antemão o que é melhor para eles. Este complexo de deus acomete todos aqueles que não se percebem como Pobres (com "p" maiúsculo, como vimos na semana passada). Ele aumenta a Pobreza dos ricos (por se considerarem superiores quando não o são) e a dos pobres (por fazê-los sentir como inferiores, quando não o são).

Vejamos uma história ilustrativa:

Uma igreja do centro de uma cidade, branca e economicamente abastada, decidiu, no espírito do Evangelho, auxiliar uma comunidade negra em um projeto habitacional. As pessoas que lá moravam eram a maior parte desempregadas, com alto índice de violência doméstica e gravidez precoce, além do abuso do álcool e do uso de drogas ilícitas. Após vencer a resistência de vários membros da igreja, o pastor conseguiu mobilizá-la em prol daquela comunidade. Eles assumiram o ponto de vista econômico, e entenderam que a pobreza era falta de recursos materiais. Dentre os que a igreja possuía, decidiram distribuir, no natal, presentes às crianças, entregues ao som do coral entoando músicas natalinas. A primeira recepção foi estranha, mas logo começaram a ser recebidos com  um sorriso pelas mães e crianças. O sucesso foi tão grande que a mesma estratégia foi  usada na páscoa (distribuindo chocolates) e no dia de ação de graças (distribuindo perus). Após alguns anos, o número de voluntários para o projeto caiu, e o pastor foi investigar a razão. Após muito trabalhar, um membro que disse que estavam desmotivados, porque não viam a situação melhorar. Somente mães jovens os estavam recebendo à porta, e lhes parecia que elas não mereciam ajuda por estarem sempre engravidando solteiras unicamente para receber auxílio do governo.

Mas a verdadeira razão era outra. Os pais, imigrantes negros, tinham grande dificuldade em encontrar emprego. Conviviam com a permanente sensação de serem inferiores e incapazes. Quando percebiam a chegada dos voluntários, fugiam envergonhados porque não eram capazes de dar as suas famílias o que os voluntários davam. E esta vergonha, alimentada pelo trabalho da igreja, reduzia mais ainda a chance de conseguirem ou manterem os empregos, aumentando mais as dificuldades econômicas.

Os dois lados foram machucados nesta tentativa de auxílio. A comunidade, com o aumento do seu sentimento de inferioridade; a igreja, com a sutil percepção de superioridade e de arrogância. O trabalho social acabou por alimentar um grande distanciamento entre eles.

adaptado do segundo capítulo do livro "when helping hurts"

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