domingo, 22 de dezembro de 2013

A gente acaba levando muita coisa pra família [...]. E isto aumenta o estresse”: a prisão além dos muros


Em certa ocasião, um agente penitenciário relatou-me:

O senhor sabe que [...] eu peguei o meu filho falando que nem vagabundo, é. Daí eu fiquei apavorado e fui pra cima dele: “Me conta onde foi que você aprendeu a falar desse jeito!”. Pensei que ele estivesse andando com vagabundo. Ele ficou quieto, depois me disse que não andava em má companhia. Eu fui até investigar e acho que ele me falou a verdade. Daí, eu fiquei pensando: acho que ele aprendeu a falar assim comigo mesmo.

Outro depoimento traz a mesma observação:

A cultura do preso acaba com a gente. A gente começa a falar como preso, daí a pouco, a família também. Família de agente penitenciário conhece todas as palavras, fala igual a preso”.

Isso torna a vida extracárcere mais difícil e estressante, como afirmou outro entrevistado:

Ao chegar em casa, no ambiente de família, deixar, sair do trabalho não é fácil. A gente acaba levando muita coisa pra família: é gíria, é jeito, é tudo. E isto aumenta o estresse”.

Um agente penitenciário, a quem perguntei sobre qual havia sido a reação de sua família ao saber que ele escolhera esta profissão, explicou-me:

É, foi difícil, foi difícil pra todo mundo. Porque é uma mudança radical. [...] E foi uma mudança radical, né? Eu, de repente, passei a conviver com bandido, trabalhar dentro de cadeia. Todos sofrem, não há como dizer que não. Mas, graças a Deus, eu sou centrado, vamos dizer assim, e eu já condicionei inclusive minha família nesse tipo de coisa. Eles sabem que eu sou conformado, faço o que tem que ser feito, não excluo a possibilidade de um dia tá numa situação difícil na cadeia e aí eles sabem disso. Só que eu sempre deixei claro o seguinte: que eu nunca vou me omitir da minha responsabilidade. É, nunca vou deixar de fazer o que tinha de ser feito. E eles tão condicionados. Eles sofrem, logicamente, toda vez que tem uma situação [...] me preocupo, na primeira oportunidade, em pegar no telefone e dizer que eu tô bem, porque eu sei que eles vão se preocupar. Só que sofrem sempre, né? É difícil pra eles.

Conforme outro agente:

Sabe, eu me surpreendi, pô, gritando com a minha filha, sendo áspero com a minha mulher ou ralhando por causa de bobagem, entendeu? Porque você sai “carregado” da cadeia, o estresse é muito grande! Sai, sabe, saturado! Aí, “qualquer pé de galinha dá canja”. Às vezes, a mulher vinha me trazer um problema qualquer, eu falava: “Pô, acabei de sair da cadeia! Pô, um monte de pepino pra descascar!” Começava a me incomodar com aquilo. Ela tava fazendo certo, pedindo opinião prá mim, pedindo prá resolver o problema que era minha obrigação resolver.
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A propósito da relação entre trabalho e família, Seligmann-Silva afirma que [...] a trama complexa dessa interface, numa visão preliminar, deixa entrever uma via de mão dupla: de um lado, há o fluxo em que a subjetividade desloca experiências familiares para o mundo do trabalho; de outro, a corrente que transporta para a vida familiar determinações emanadas do trabalho. Mas os dois fluxos se entrecruzam muitas vezes, ao mesmo tempo em que dão lugar a dinâmicas pelas quais se realimentam reciprocamente (1994, p. 197).

No entanto, no caso dos agentes, tudo indica que o fluxo principal é o do trabalho para a família, funcionando como importante desestabilizador do equilíbrio familiar. Foram recorrentes os depoimentos de agentes penitenciários que relacionaram trabalho e desequilíbrio familiar, isto quando não indicaram o trabalho na prisão como elemento determinante da separação do casal ou mesmo da dissolução da família


extraído de “A identidade e o papel dos agentes penitenciários”, de Pedro R. Bodê de Moraes, disponível, na íntegra em http://www.scielo.br/pdf/ts/v25n1/07.pdf

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